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domingo, 2 de dezembro de 2018

CRÍTICA À METAFÍSICA FEITA POR IMMANUEL KANT



 Paulo Monteiro dos Santos[1]


RESUMO: O presente trabalho tem como fim: descrever a crítica dada por Kant em relação á capacidade do conhecimento humano de saber sobre a metafísica e até onde este se limita. Também tentou-se neste artigo fazer uma síntese sobre as discussões a metafísica, desde Platão até Hume. Notou-se, por fim, que Kant bloqueia o conhecimento em relação a metafísica, mas não impossibilita sua existência.

PALAVRAS-CHAVES: Kant. Metafísica. Conhecimento
                                                                                                                               
INTRODUÇÃO

O presente artigo faz um apanhado geral da crítica que faz Kant a metafísica. Na primeira parte se pretende discutir a relação da filosofia grega e da cristã, o que resultou de um mesmo significado, no que tange a explicação da realidade pela teoria realista, mas estas diferem no que diz respeito à explicação do mundo pela origem. A grega diz que a origem se dá de forma emanentista; a cristã protesta, dizendo que a origem é criacionista, onde Deus criou o mundo.
Logo em seguida, Descartes e Bacon, retiram a ideia de uma explicação realista do mundo, afirmando que o mundo não é do jeito que vemos, pois este pode nos enganar. Descartes e Bacon dá mais importância a razão. Por ela devemos olhar o mundo livrando-o dos preconceitos. 
Estes filósofos revolucionam a ciência apresentando um novo modelo. Mas é Kant, com sua crítica ao conhecimento, quem fundamenta a teoria dos juízos, porém sua teoria, de certo modo, condenou a possibilidade de qualquer conhecimento a metafísica. Vamos entender como Kant chegou a tal conclusão.

1 HISTÓRICO DO PROBLEMA NA METAFÍSICA

Podemos perceber que a metafísica foi primeiro exposta por Platão em sua teoria do mundo das formas, onde este filósofo tentou dar uma explicação do tipo realista para descrever o mundo e a realidade que se mostra ao homem. Neste sentido Platão divide a realidade em duas: 1) mundo das formas – eidos - 2) mundo material – sombras - , onde o mundo material engana nossos sentidos, e
por essa razão, devemos buscar o conhecimento no mundo das formas, pois, nesse se encontra as verdades eternas e perfeitas (ANTISERI; REALE, 1990). Essa explicação, embora não tenha um caráter sistemático como em Aristóteles, foi a primeira grande síntese entre as filosofias de Heráclito, do movimento, e de Parmênides, sobre o ser. Mas Platão não explica de forma clara como se dá a passagem entre as formas e o mundo material. Colocando um deus modelador, Demiurgo, ou explicando pelo mito da caverna (CHAUÍ, 2000, p. 352); (CHAUÍ, 2000, p. 354)[2]. O primeiro a tentar fazer uma sistematização da metafísica foi Aristóteles, que a chamou de filosofia primeira, ou teologia (ANTISERI; REALE, 1990, p. 179). Este filósofo buscou estudar o ser, a substância e a essência. (ANTISERI; REALE, 1990). Tentou também resolver a problemática deixada por Platão sobre a questão do movimento entre matéria e forma, o qual ele explicou como ato e potência.
Porém, com a mudança da perspectiva cultural do ocidente entre o cristianismo e a cultura grega, a filosofia ganha uma nova leitura: Sai o “logos” grego e entra o “logos” cristão, e para o cristianismo as coisas não emanavam de um mundo das ideias ou de um motor imóvel, mas elas foram criadas por um Deus que em si, é monoteísta. Embora a filosofia cristã tenha assimilado muitas teorias do tipo platônicas, ela tinha uma enorme diferença em sua explicação para a origem das coisas. E seu maior nome foi Santo Agostinho. Este filósofo, com base em suas análises
hermenêuticas na Bíblia, vai dizer que Deus criou as coisas do “nada” (AGOSTINHO, 1975, p. 327). E aqui, ao menos é o que defendemos, há uma cisão e negação da cultura grega. A metafísica deixa de ser uma explicação da eminência para ter uma explicação criacionista. O cristianismo passou a dar maior “liberdade” ao homem, e pensamos que não apenas ao homem, mas também ao mundo (ANTISERI; REALE, 1990).
Santo Tomás de Aquino, outro grande nome da filosofia cristã, vai assimilar a filosofia de Aristóteles e sua teoria do ato e potência, à filosofia escolástica e mostrar pelo estudo da metafísica, a existência de Deus, e explicar a realidade do mundo, sobre esse ponto de vista. Mas tanto a filosofia grega como a cristã, entendiam o mundo de forma radicalmente realista. Ou seja, o mundo existia independentemente do homem para justificá-lo, o que preocupavam cristãos e gregos era saber qual era sua origem.
Descarte, que tinha por princípio uma filosofia racionalista, se opunha a filosofia aristotélica da escolástica. (ANTISERI; REALE, 2004, p. 287), se oponha porque para o racionalismo a verdade não depende do mundo, mas da minha própria condição de pensar. Se o mundo que vejo depende exclusivamente de meu pensamento para existir, é correto dizer que tudo o que vejo é apenas Ideias. Ideias da coisa pensante. (ANTISERI; REALE, 2004, p. 287)

A explicação anterior a Descartes, era realista. Assim, antes da modernidade, a realidade era algo determinado por leis da natureza criadas por Deus ou por um Sumo-Bem. O homem se enquadrava nestas leis e era determinado por elas. Descartes e Bacon proclamaram que as leis podem ser conhecidas pelo homem. E o homem pode modificar e manipular as leis da natureza. A grande questão era que, para Descartes, nós já tínhamos ideias inatas e não precisávamos de nenhuma experiência para conhecer as leis da natureza. (ANTISERI; REALE, 2005)
Para John Locke, (Inglaterra, 1632-1704) a mente era uma tabula rasa. Não há nada em nosso intelecto, ele recebe o material unicamente pela experiência em contato com o mundo. O empirismo que Locke proclamava é o de não apenas analisar o objeto, assim como orienta Bacon, mas de examinar a condição do sujeito frente ao objeto. Para isso Locke afirma que o conhecimento depende unicamente da experiência. (ANTISERI; REALE, 2005, p. 93) Com essa crítica ao inatismo cartesiano, Locke, e os principais filósofos ingleses vão defender uma teoria do conhecimento sobre o ponto de partida do empirismo. David Hume vai levar o empirismo a últimas consequências, formulando um ceticismo moderado, onde diz que todo o intelecto não passa de impressões, ideias e suas ligações estruturais. Não há necessidade no mundo, essas coisas são fruto da nossa capacidade intelectual. O mundo é tão somente contingente. (ANTISERI; REALE, 2005, p.133-138)  
Tanto os empiristas quanto os racionalistas defendiam uma concepção idealista do mundo, embora ambos, com explicações diferentes sobre o processo de como se dava o conhecimento. Será Kant, com seu criticismo, que unirá as duas grandes correntes na teoria dos juízos sintéticos a priori. Mas Kant levará as últimas consequências as teorias idealista da razão, negando a possibilidade de um conhecimento metafísico.

2 CRÍTICA DE KANT A METAFÍSICA

Kant, deu toda razão a Hume. Hume o acordou de um sonho dogmático, assim diz Kant. (PASCAL, 2008, p. 29-30). A causalidade não tem fundamento. O sonho da ciência era formar um princípio necessário e universal, mas não há um determinismo causal na natureza. Kant percebeu que
havia um confronto entre a ciência de Isaac Newton e o ceticismo de Hume. Além disso o embate entre empirismo e racionalismo.  Kant não era por certo um cético radical como Hume, mas havia verdades que eram universais e não apenas contingentes. "Como efeito, o empirismo cético de Hume e, em particular, a sua crítica da noção de causalidade, tornava incertas as posições do racionalismo dogmático. [...]" (PASCAL, 2008, p. 29-30). Assim Kant retoma a análise dos juízos: Analíticos e Sintéticos.
Kant chega a uma conclusão, que os juízos só são sintéticos a priori. Eles não são apenas sintéticos e analíticos. Há verdade nas discussões de empiristas e inatistas. Há relação entre a experiência e o sujeito conhecedor.

Mas a grande descoberta de Kant, a que confere todo o seu alcance à sua "revolução copernicana", é a da existência de uma terceira classe de juízos, os juízos sintéticos a priori. Estes são universais e necessários, como os juízos analíticos, mas, além disso, nos permitem ampliar os nossos conhecimentos, enquanto os juízos analíticos apenas podem explicá-los ou esclarecê-los. (PASCAL, 2008, p. 39)

Na Crítica da Razão Pura, Kant cria um sistema de faculdade para um sujeito que é transcendental. E estas faculdades são comuns a todos não apenas para um único sujeito. Na filosofia de Kant temos uma teoria da mente. (PASCAL, 2008, p. 69) A ideia básica para conhecer é matéria e
forma, assim como na teoria de Aristóteles, mas a coisa em si mesmo não podemos conhecer. A coisa em si mesmo é um caos. Nós é que pomos a forma para organizar, dar ordem a esse caos.  (PASCAL, 2008, p. 69). O sujeito transcendental, dito por Kant, tem um sistema de capacidades que pode compreender sobre a percepção do mundo, e pensar sobre o mundo. Essas capacidades devem também compreender os conceitos formulados nesse sujeito.
Temos a capacidade da sensibilidade a primeira faculdade do sujeito transcendental, e ela nos fornecem a intuição. A intuição é uma percepção imediata de fatos empíricos. O sujeito também tem a faculdade de formular conceitos, essa faculdade é do entendimento. A faculdade do entendimento se dá pelas categorias, que são doze. Tais categorias nos dão a capacidade do entendimento. Há ainda outra faculdade que liga entendimento com a faculdade da sensibilidade ela é a imaginação. Não a imaginação de ilusão, mas uma imaginação transcendental.  (PASCAL, 2008, p. 62)
 A imaginação liga a intuição aos conceitos e o resultado desta ligação são os juízos, que por sua feita, resultam nos fenômenos. A junção entre a Estética Transcendental e a Analítica Transcendental, surge a Dialética Transcendental. Na Dialética, Kant escreve sobre a Razão, assim ele aborda coisas da não sensibilidade. O conhecimento é agora uma produção humana que não apenas observa, pois, o objeto não é simplesmente dado. O problema é que a razão nesse processo de conhecer busca sempre ir além de sua capacidade. (KANT, 1980, p. 25)

Esses problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, Liberdade e Imortalidade. A ciência, porém, cujo propósito último está propriamente dirigido com todo o seu aparato só à solução desses problemas denomina-se metafísica; o procedimento desta é de início dogmático, ou seja, assume confiantemente a sua execução sem um exame prévio da capacidade ou incapacidade da razão para um tão grande empreendimento. (KANT, 1980, p. 25)

A razão busca ir além do fenômeno, ela quer se elevar ao ser-em-si, conhecer o Númeno. (Kant não chama de Ser, mas coisa-em-si). A razão sempre nos leva ao metafísico e o grande problema da metafisica é que ele mostra conceitos sem intuições. Mas a grande questão se encontra na necessidade de a razão buscar ir além das suas capacidades, suas condições de possibilidades no processo de conhecimento. Mas sem esse propósito nos diz Kant que os avanços na própria ciência se limitam. É essencial para a razão ir além.

[...] Com efeito, sem ser movida pela mera vaidade da erudição, mas impelida pela sua própria necessidade, a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios ai tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e continuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a especulação. (KANT, 1980, p. 25)

A questão para Kant é como surge na razão pura as perguntas que a própria razão humana buscar responder, de maneira necessária, além disso, de maneira que estas questões, levantadas pela razão humana, são tratadas de forma como se estivessem no mundo natural. Tais questões são Deus, a Imortalidade da Alma, e a Liberdade.

Todavia, estes raciocínios, que resultam da própria natureza da razão, são outros tantos sofismas, e é ao estudo desses raciocínios sofísticos que Kant consagra a segunda parte da Dialética transcendental, intitulada " Dos raciocínios dialéticos da razão". Os sofismas que conduzem à ideia de alma, e são chamados paralogismos da razão pura, constituem a Psicologia racional. A ideia de mundo, objeto da Cosmologia racional, inspira os raciocínios contraditórios chamados antinomias da razão pura, os quais são igualmente verdadeiros ou igualmente falsos. E, enfim, a Teologia racional, que trata do ideal da razão pura, ou seja, de Deus, contém os sofismas pelos quais se pretende demonstrar a existência de um Ser supremo.  (PASCAL, 2008, p. 95)





CONCLUSÃO

Com isso fica evidente que Kant não quis mostrar nenhum princípio do Ser, mas sim o princípio do conhecer. (NÓBREGA, 2011, 39) Assim Kant faz uma Teoria do Conhecimento, e não uma metafísica. Ao contrário, Kant de certa forma bloqueia o caminho a metafísica como uma ciência. "O que diferencia os conhecimentos racionais da matemática e da física, dos da metafísica é que aqueles são juízos sintéticos a priori, e estes, juízos analíticos." (PASCAL, 2008, p. 39) A ideia de Imortalidade da alma, a cosmologia e de Deus, são ideias incognoscíveis. Esse fato, da impossibilidade da metafísica como ciência, causou uma ruptura no modo de pensar a filosofia. A metafísica parte de princípios postulados, os quais a razão afirma, mas não conhece. O que podemos conhecer só o pode dentro das categorias, e nada mais, além disso.

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. In: ______.  Immanuel Kant. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultura, 1980. v. 1. (Coleção Os pensadores).

NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Tradução de Raimundo Vier. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario.  História da Filosofia: Filosofia pagã antiga e medieval.Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990. v. 1. (História da Filosofia).




SANTOS, Paulo Monteiro. O problema do nada na filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre. 2018. 1 f. Monografia (Bacharelado em Filosofia) - Faculdade Vicentina, Curitiba, 2018.                                                              



[1] Graduando do Curso de Filosofia na Faculdade Vicentina. E-mail: paulus.monterum@gmail.com
[2] Estas ideias estão mais bem expostas no meu artigo “Matéria e Forma” em Aristóteles


domingo, 11 de novembro de 2018

CONFERÊNCIA: MISERICÓRDIA EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE - PROF. BORTOLO VALLE 26/10/2018. SALÃO DA FACULDADE VICENTINA – CURITIBA/PR



Qual a condição das histórias do passado para o homem? Antes de respondermos, devemos saber que estas histórias são todas fictícias. Sua condição é nos tirar dessa realidade; nos tirar do mundo. Os mitos e religiões, têm como núcleo, o paradoxo. No fundo os nossos relatos é para responder quem somos, ou responder o que é o homem. Mas Deus não pergunta ao homem o que ele é, ou quem ele é, mas “onde estás”? (Gn. 3,9). A pergunta mais cabal em nossos tempos, não é saber quem somos, mas é saber onde estamos, e como sair do lugar em que estamos.  
Em tempos de pós-verdade não existem mentiras e isso é assustador, já que se os relatos e fake newsfossem mentiras, poderíamos reparar os fatos. A mentira é uma verdade e é feita para não durar. E a verdade que mais nos interessa é a que não dura. Esta verdade deve ser feita para o futuro, pois não podem durar no eterno presente. E mesmo as verdades eternas, devem não durar. O que é o amor hoje? Assim como as verdades, a misericórdia (tema central desta conferência) não foi feita para durar.  
A verdade tornou-se uma mercadoria: Hoje ela é feita para ser comprada nas prateleiras dos supermercados. E se ela é uma mercadoria ela tem seus produtores, pessoas que são pagas para elaborarem verdades. A verdade é icônica: A verdade foi feita para ser olhada pelas pessoas; vista, vislumbrada. Deve ser impactante, só assim ela nos prende a atenção. Esta verdade é delirante: Ela tem uma resposta para cada uma de nossas necessidades.  
Assim surge a pergunta de não nos preocuparmos de sabermos quem somos, mas onde estamos. A sociedade humana quer se situar no espaço-tempoentre um passado e um futuro. Um passado perdido, que não tem volta e um futuro de proposta que nunca chegam. Mas onde fica a misericórdia nessa história? Ela tem um nome que é “cuidado”. Hoje não temos mais cuidado com os outros nem com o mundo. Como vamos entender da misericórdia nesse mundo da falta de comprometimento? De certo modo, a misericórdia também tornou-se uma mercadoria. Ela é icônica e produzida. 
Hoje nós nos amamos virtualmente. Sou capaz de me comover com pessoas morrendo na TV, mas não com os mendigos da rua de casa. E os produtores das verdades sabem disso. Nós temos que pensar e repensar o que significa o “cuidade” (misericórdia). Então, não devemos olhar como um cálculo, mas num sentido de “cuidado”. Pascal afirmava que temos que ter um comprometimento com o outro como em forma de empatiaAtrás de um corpo tem um ser-aí. 
Nos tempos de pós-verdades, nós estamos vendendo o corpo, limitando o conhecimento do outro apenas ao corpo. O homem não é só um corpo, é um ser para o espírito. Hoje não sentimos com as pessoas seus sofrimentos. Para onde vai nos levar esses tempos de pós-verdades sem misericórdia? Se não nos comprometermos com o olhar de misericórdia ao outro, como vamos viver em tempos de pós-verdades? 
                 


Bortolo Valle 
Filósofo

ARTIGO: MATÉRIA E A FORMA EM ARISTÓTELES


RESUMO: Este artigo tem por objetivo dissertar, de forma sintética, sobre o tema da Matéria e Forma na Filosofia de Aristóteles, tendo em vista as implicações que esta teoria põem em discussão, o problema do Ato e Potência, Substância e o Motor Imóvel. Também se buscou, neste artigo, mostrar uma breve demonstração da crítica que Aristóteles faz a teoria do mundo das Ideias de Platão, e de como Aristóteles faz surgir uma nova análise sobre a Metafísica, a tal ponto que está Metafísica, proposta por Aristóteles, mudou de maneira radical o modo como vemos a Matéria e o mundo das Formas.



INTRODUÇÃO

Aristóteles (385 a.C) nasceu em Estagira, na Macedónia. Estagira era uma cidade considerada grega, pois foi fundada pelos gregos de cultura jônica.  Por ser de uma família que tinha tradição na medicina, Aristóteles manifestou interesse também na natureza. Seu pai, Nicômaco, era médico e foi consultou do rei da Macedônia. Nos seus 18 anos, Aristóteles vai para Atenas, onde passa a estudar na academia de Platão. (CHAUÍ, 2000, p.334). 
Platão o influenciou de maneira tal que a marca platônica ficou em sua filosofia, mesmo Aristóteles superando-o em muitos pontos, as influências de Platão e sua característica metafísica acompanharam Aristóteles, e foi o que de mais se discutiu em sua obra até os dias de hoje. Aristóteles morreu em 321 a.C, com a idade de 63 anos. (CHAUÍ, 2000, p. 334). 
Neste pequeno texto trataremos do tema Matéria e Forma em Aristóteles. Sendo esse assunto um conteúdo que corresponde a todo um sistema ontológico, faz-se necessário tratar do tema da Metafísica, com o objetivo apenas de conceituar esses dois elementos, matéria e forma, na filosofia aristotélica.  
Vele lembrar que o termo Metafísica não foi usado por Aristóteles. Esse termo foi usado por um organizador das obras de Aristóteles, Andrônico de Rodes, que no século I catalogou as obras de Aristóteles. Este Andrônico, utilizou o termo metafísica para classificar os textos aristotélicos como aquela ciência que está além das ciências físicas. Aristóteles chamou essas ciências, na verdade, de ciências primeiras. (CHAUÍ, 2000).

1 CRÍTICA A TEORIA DE PLATÃO SOBRE O MUNDO DAS IDEIAS


Antes de iniciarmos, alguns pontos devem ser colocados principalmente pelo fato de a teoria de Aristóteles ser uma crítica a teoria de Platão. Conforme essa crítica Aristóteles constrói toda a sua teoria metafísica. 

Ora, ao dar às Formas um estatuto ontológico forte – elas são o ser – e separá-las num mundo inteligível eterno à parte, Platão impossibilitou que elas pudessem explicar o mundo sensível, pois nada há em comum entre eles. O sensível se reduz a uma aparência degradada ou uma deformação do inteligível e o filósofo é convidado a abandoná-la em lugar de compreendê-lo. Epistemologicamente, a teoria das Ideias é inútil. (CHAUÍ, 2000, p.352)

Sendo o mundo sensível um mundo apenas de sombras, não se pode conhecer nem analisar tal mundo. Dessa forma realmente é inútil, pois sendo as Ideias realidades em si mesmo, não servem para conhecermos a realidade em nosso mundo. Para Aristóteles as Formas não são realidades em si mesmo, mas são " [...] a unidade inteligível da multiplicidade sensível [...]" (CHAUÍ, 2000, p.352).  
Aristóteles critica vários pontos em Platão. Primeiro é a duplicação desnecessária da realidade. Platão duplica a realidade em dois mundos e com isso não consegue resolver a aporia que é apresentada no mundo sensível, já que essas aporias se apresentam no mundo das Ideias. Um exemplo é a Ideia de identidade; multiplicidade e de diferença. Aporias suscitadas em Heráclito e Parmênides. Ou seja, as antinomias que se apresentam no mundo sensível, também se apresentam no mundo inteligível. (CHAUÍ, 2000, p.352). 
Segundo ponto: Para Aristóteles a teoria da participação de Platão não faz sentido já que "[...] para dizermos que uma coisa particular é o que é porque participa de uma ideia com a qual tem semelhança da cópia com o modelo, será preciso encontrar uma terceira ideia, [...] mas, para dizer que uma ideia participa de uma outra, precisamos de uma quarta ideia que sirva de modelo as outras duas e assim indefinidamente. [...]" (CHAUÍ, 2000, p.352).  
O terceiro problema que Aristóteles vê em Platão é: Se há uma ideia para cada coisa no mundo então deve-se haver também uma ideia de relação, mas uma relação não possui ideia de nada porque não é uma coisa no mundo. "[...] Portanto, não pode haver ideia de relação. [...]" (CHAUÍ, 2000, p.353). E sem a ideia de relação como justificar a relação das coisas no mundo? 
No quarto problema, Aristóteles fala que se há a ideia do positivo, do belo e etc, deve-se haver também a ideia do mal, do negativo. Se a ideia de beleza, deve-se haver a ideia da não-beleza. Deve-se haver ideia não apenas para o negativo, mas para os modos das coisas, assim essa concepção platônica acaba indo para um infinito mundo de ideias, o que para Aristóteles é absurdo. (CHAUÍ, 2000, p.353).  
No quinto problema, apontado por Aristóteles, a teoria de Platão não diz como é a gêneses das coisas. As Ideias para Platão são eternas e o Demiurgo apenas modela as coisas, que são prontas e acabadas. A teoria de Platão não explica como o mundo sensível da origem as coisas. Por fim, no sexto problema, as Ideias impedem que o mundo sensível tenha inteligibilidade, assim o mundo sensível é irracional e não pode ser conhecido. " [...] As ideias roubam o sentido do mundo, em vez de dar-lhes sentido." (CHAUÍ, 2000, p.354). 
Concluindo essa crítica as teorias platônicas, Aristóteles vai dizer que a "forma (o eídos[...] determina a identidade de uma coisa, determina o que ela é em sua essência, e se encontra na própria coisa, cabendo ao pensamento separar intelectualmente a forma (universal) e a coisa (singular), isto é, separar a forma da materialidade da coisa." (CHAUÍ, 2000, p.356).

2 A CONCEPÇÃO DE MATÉRIA E FORMA EM ARISTÓTELES
  
Não existe para Aristóteles um mundo aparte de ideias. A ideia está na própria coisa, unida entre forma e matéria, onde uma dá sustento à existência da outra, cabendo ao pensamento fazer uma abstração e separar as duas. Pelo pensamento é que podemos conhecer o universal, aquilo que é necessário e que está na coisa sensível e não em um mundo fora da materialidade.  Passamos agora a analisar como chegamos a ideia da forma e da matéria começando pela teoria das Categorias de Aristóteles (CHAUÍ, 2000, p.357).
Aristóteles afirma que o ser se diz de várias maneiras (CHAUÍ, 2000, p.358), mais propriamente em 10 categorias: 1) Substância, ou essência; 2) Quantidade; 3) Qualidade; 4) Relação; 5) Lugar; 6) Tempo; 7) Posição; 8) Posse; 9) Ação; 10) Paixão. Essas categorias são os modos do ser e servem para que o pensamento possa conhecer este ser e exprimi-lo. 

Do ponto de vista gramatical, as categorias correspondem ao substantivo, adjetivo, advérbio e verbo. Essa unidade entre gramática e lógica indica não só a unidade entre linguagem e pensamento, mas também a unidade entre dizer, pensar e ser. [...] (CHAUÍ, 2000, p.360)

Destas categorias a mais importante é a da substância, pois em ralação a ela as outras categorias são apenas predicadas ou atributos da substância. A substância é um substrato que suporta as outras categorias. Por isso se diz que as outras categorias são os acidentes da substância. (CHAUÍ, 2000, p.361). É na substância onde se há o conjunto: matéria, forma e individualidade.  
O que vem a ser a Matéria para Aristóteles? A matéria é a substancia como suporte, substrato. Sujeito que pode se conceber com propriedades, "[...] justamente porque em si mesmo e por si mesmo ela não possui nenhuma. [...]"  (CHAUÍ, 2000, p. 392). O que vem a ser a Forma? A forma é quem vai determinar, pois ela é a substancia como essência. É ela quem dá atributos e propriedades a matéria.  
Explicaremos melhor com as palavras de Nunes quando este autor afirma que matéria é possibilidade dê, e a forma o ato: (NUNES, 2009, p. 27). 

[...] Simples potencia ou possibilidade, a matéria, cujo sentido metafísico tem por base a conotação artesanal de hyle, necessita de uma forma (morphe), que a delimite e determine. Longe estamos, porém, do universo platônico, em que a forma, como ideia, subsiste separada das coisas, num mundo inteligível. Para Aristóteles, ela não é essência universal, mas princípio ativo, verdadeiro ato que determina a matéria ou potência, atualiza as aptidões nela esboçadas e produz um ser perfeito, substancial. A forma é causa intrínseca do nascimento, crescimento e conservação dos serres naturais. Ela é, para empregarmos a palavra consagrada, que significa princípio originário e organizador, enteléquia. (NUNES, 2009, p. 27) 

Essa explicação nos leva a dizer que a matéria tem em si a potência, e a forma a do ato. A Matéria é atividade que possibilita algo. A Forma a, atualiza, a “coisa”, (matéria). A palavra Matéria se origina da palavra madeira “[...] hyle, em grego. [...]" (NUNES, 2009, p. 27). Acreditamos, e essa é nossa opinião, que aquilo que reveste a matéria precisa de algo que determine a possibilidade da matéria se atualizar, e atualizar aqui significar mudar. A matéria precisa da Forma.
 A Forma é (e partimos de Nunes (2009) nesta nossa afirmação) um principio ativo na Matéria. É algo que da condição a possibilidade da Matéria se atualizar. A grosso modo, a Forma é um principio originador que faz a matéria se tomar em “forma”[1]. E aqui está um fundamento básico: A Matéria tem que ter uma “forma”, pois sem “forma” ela é indeterminada. Por isso, a Matéria deve ser determinada pela Forma, se não, fica-se impossível pensar a Matéria, porque sem “forma” não há nada para se pensar.  Por essa razão Nunes (2009) afirma que é um principio originário e organizar. É enteléquia, pensável.
Podemos então dizer que a Forma, por exemplo no artista, é uma ideia que este modela e atualizar na Matéria que ele trabalha (NUNES, 2009, p.27). Assim, a Natureza também é uma matéria atualizada por Deus, um ato puro, Forma das formas. Assim, chegamos a ideia de Aristóteles no Motor Imóvel. Pelo Motor Imóvel, Aristóteles vai justificar a causa do movimento. Uma Causa final. (NUNES, 2009, p. 27). Neste ponto, se diz que a teoria aristotélica é determinista.

CONCLUSÃO

A teoria de Aristóteles sobre Matéria e Forma é apenas uma parte de toda uma metafísica que, de certa forma, resolveu muitas lacunas que antes se via na teoria platônica. A bem da verdade, Aristóteles modificou de maneira radical as ideias de Platão, unindo a Forma (Ideias) a Matéria (Sensivel), e eliminando o conceito de Sombras dito por Platão. Assim pela Matéria como Potência e a Forma como Ato, Aristóteles garante o movimento no mundo e os princípios lógicos da razão, unindo Heráclito a Parmênides.   

REFERENCIAS






CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

NUNES, Benedito. Introdução a Filosofia da Arte. São Paulo: Editora Ática, 2009


PAULO MONTEIRO DOS SANTOS:
Graduado em Filosofia - FAVI; Graduado em Letras- UNEB;
Email: paulus.monterum@gmail.com



[1] Essa palavra forma, com aspas, que dizer não ao conceito de forma em Aristóteles, mas ao mudo corriqueiro. 

domingo, 20 de maio de 2018

POESIAS COLETADAS DO POETA JOSÉ ARCANJO MOURA: A POESIA ORAL DO MENESTREL DA CIDADE DE TUCANO: BAHIA


Organizador e Comentador: Paulo Monteiro dos Santos[1]




RABO BRANCO 

Atenção,  
Em verso vou publicá 
A história d’um gato 
Que come sem lhe custá.  
Só o gato engordano  
E os morado clamado  
Sem ter jeito para dá.  

Da Vazea  de Cima ao Raso Limpo
Da Serrote, a Carnaíba, 
Esse gato passeava, 
Procurando a comida. 
A custa dos criador, 
Pra ele nunca faltou 
Com que encher a barriga. 

Lourival sempre clamava 
E falou a muita gente, 
Mate esse gato danado 
Que não tem quem aguente, 
Procure um caçador  
Que esse gato comedor 
Vai acabar a semente. 

Pode fazer uma bolsa  
Que eu garanto ajudar 
Dou uma ovelha boa 
Ao caçador que matar 
Esse gato perigoso 
Que já estou desgostoso 
Não adianta criar. 

Nininho de Zé Paulinho 
Com ele se encontrou 
Em cima de uma carniça  
O gato lhe enfrentou 
Com uma espingarda-francês4,  
Bateu o crefe5 duas vez 
E o gato desabou. 

Nininho e Ovídio 
À noite foram caçar 
Depois que andaram um pouco 
Viram os cachorros acuar 
Chegaram era Rabo Branco 
Nininho muito franco 
Subiu logo pra laçar. 

Quando foram chegando perto 
O gato se arrepiou  
Descendo de erva baixo 
Com ele se encontrou 
Querendo lhe estrangular, 
Nininho pra se livrar 
Botou o facho6 e queimou. 

Botou o facho na cara 
O gato pulou de um lado 
Nininho desceu em baixou 
Bastantemente assombrado 
Dizendo para Ovídio: 
“Já viu que gato atrevido? 
Me vi um pouco apertado.” 

Nessonha a Dé Pereira 
Vieram para rastejar 
Com dois cachorros de fama 
Que só queriam botar 
Soltaram na bagaceira 
Não viram nem a poeira  
Rabo Branco ficou lá. 

Ainda botaram um dia  
Ele com a barriga cheia 
Espantaram da carniça, 
Tinha matado uma ovelha 
Disseram: “ Hoje tu morre! 
Gato pesado não corre, 
Agora tu se areia7.” 

Ficaram gritando  
Arribando os cachorros 
Gato estava apertado 
Que só um pinto no ovo. 
Pra história se encurtar 
Em vez do gato se área, 
Ele foi que areou os cachorros.  

Ficaram desanimados 
Porque não viram vantagem, 
Rabo Branco quando sai 
No chão só deixa raspagem. 
“Só morro quando Deus quiser! 
Nessonha e Sinhô André 
Não vem me caçar mais”. 

Eu estou aqui morando 
Nuns terrenos de areia, 
Ando pra cima e pra baixo 
Pisando na mesma aldeia. 
Quem tiver cachorro ruim 
Não ponha atrás de mim 
Eu quero é comer ovelha.  
  
Durval Dantas Pereira 
É um homem muito animado, 
Quando fala neste gato 
Ele dá seu resultado. 
Dizendo perante o povo: 
“Se meu cavalo fosse novo 
Eu ia pegar enrabado8.” 

Edelsom mais Edelfonso  
Ainda foram uma semana 
Para matar Rabo Branco, 
Mas todo mundo se engana, 
Em vez do gato eles matar9 
Os cachorros foram pegar 
Umas cabras da Velha Ana.  

Por causa de Rabo Branco 
Tudo ta indo na taca10
“Vamo pro mato caça ele 
Com ele ninguém se ata 
miunsa11 se consome 
Que as ovelhas o gato come 
As cabras os cachorro mata.  

 Até a velha Ana 
Ta esquentando o juízo 
Por causa de Rabo Branco  
Ta tendo prejuízo:  
“Este gato é um horror, 
Que lhe falhe os criador 
Enquanto ele for vivo.” 

A fama de Rabo Branco  
Já está um pouco crescida, 
Já veio do Creguenhe12 
Aqui para a Carnaíba. 
Dois caçadores pra esse gato 
Passar a semana no mato 
A fim de tirar-lhe a vida. 

Na casa do Zé do Santo 
Eles ficaram arranchados 
Com um cachorro velho e feio, 
Alem de feio pelado. 
No domingo foram ao mato 
E lá encontraram o gato, 
Voltaram envergonhado. 

Bota cachorro pelado 
Neste gato não convém, 
Rabo Branco é sabido 
É mimoso e passa bem. 
Veio dá seus passos atoa 
Quem tem cabelo não acoa 
Quanto mais quem não tem. 
  
O senhor João Batista 
É um homem muito ativo, 
Trouxe os caçadores de fora  
Pra evitar o prejuízo. 
Tirar o gato da aldeia 
Para ver se as ovelhas 
Podiam ter um alívio. 

Mas o plano não deu certo, 
Porem nada esta valendo. 
Os caçadores foram embora 
O gato ficou comendo. 
O dia dele não chegou 
Por isso os criadô 
Ainda estão sofrendo. 

Sinhozinho Calazansas,  
Homem de sorte aplaudida, 
Nunca caçou Rabo Branco, 
Mas foi quem tirou-lhe a vida. 
As ovelhas sossegou,  
Sinhozinho foi quem matou  
Aquela fera temida.  

Ninguém sabe quem é ele 
Com aquela macieza
Sabe onde as cobra dorme 
Tem dote da natureza. 
Tem cachorro de valor, 
Rabo Branco se acabou 
Pra ele não teve destreza. 

Agora os moradores, 
Todos já podem dar 
Um agrado a Sinhozinho 
Mesmo sem ele cobrar, 
Por sua delicadeza, 
Em recompensa da defesa  
Que ele fez trocar. 

LULÚ DE DONA MORENA 

Lulú de Dona Morena, 
Ele fez uma saída, 
Foi passear no pé da serra 
Para divertir a vida. 
Lá bebeu se embriagou 
E nunca mais acertou 
Com o caminho da Carnaíba. 

Anoiteceu e não chegou 
Ficaram em confusão, 
Seguiu cinco homens atrás  
Procurando informação, 
Quem encontrava eles perguntava, 
Disseram que já andava 
Com pé calçado outro no chão. 

Só deus sabe como ele ficou 
Quando se viu embriagado, 
Não sabia onde estava, 
Um pé no chão, outro calçado. 
Por causa da pindaíba 
O caminho da Carnaíba 
Pra ele era fechado.  

Ficou desorientado 
Saiu andando atoa, 
Tomou o caminho do Sítio 
Igualmente a quem avoa
No Sitio não quis ficar,  
Resolveu viajar 
Foi sair na Lagoa 

Ficou pra cima e pra baixo 
Querendo fazer guerra 
Porque todo mundo sabe 
Que os bêbados são os que erra
Bêbado não tem quem aguente, 
Ai voltou novamente 
Foi sair no pé da serra. 

Andou na Baixa-do-Cabrito13, 
Andou na Pedra-da-Ovelha
Caminhou a noite toda 
Fazendo rastro na areia. 
Neste dia viu a morte, 
Mais ainda teve muita sorte 
Que voltou pra sua aldeia. 

Não comeu e nem bebe, 
Passou a noite com fome. 
Não adiantava chamar 
Que a bêbado ninguém responde. 
Pelo tanto que ele andou 
Nesta noite ele virou 
Bicho-lobisomem

Mas acharam ele bêbado, 
Ficaram ajeitando, 
Trouxeram ele de volta, 
Isso ai foi um bom plano, 
Porque se não fosse atrás  
Ele não voltava mais 
Ainda hoje tava andando. 

Mas tudo isso é o signo  
Que Deus lhe deu, 
A ordem do criador, 
Cada qual pra que nasceu. 
Das bodegas ele é freguês, 
O futuro que ele fez 
A cachaça já comeu.  

Lulú eu peço desculpa 
D’eu isso ter rimado. 
Se você buli14 comigo 
Eu foi bastante errado. 
Você tem toda razão 
Mais se queixe de seu irmão 
De ele ter me mandado. 

Vieram me dizer 
Todos os dois de uma vez,  
O seu filho e seu irmão 
Contando o que você fez 
Falaram tudo num dia 
Realmente eu não sabia  
Desta tua embriagues.  
  
TESTAMENTO DO JUDAS 

Hoje eu vou morrer queimado 
Só me queixo do prefeito 
Trabalhei vinte dois anos 
Não recebi meus direitos 
Nunca tive proteção 
Hoje eu to nesta aflição 
E ele não me dá jeito. 

Falei também com o Gildásio 
Pra vê o que ele fazia, 
Porque vou morrer queimado 
Vê se ele me defendia. 
O que ele veio me dizer: 
“Pra mim se você morrer 
Eu tenho mais alegria.” 

Todos presta a atenção 
Porque agora vou fala 
Na oferta do povo 
Que eu preciso avisar 
Porque hoje eu vou morrer 
Pra vocês todos saber 
O que eu vou deixar. 

Pra Niria eu vou deixar 
Um emprego de alegria 
Pra ela ficar trabalhando 
Em casa de família  
Pra ela não perder o ganho 
Ela só vai tomar banho 
De oito em oito dia.  

Pra Dadá eu vou deixar 
Uma obrigação mais pouca 
Pra ela não se flagelar 
Se não ela fica louca 
E ninguém ta agradecendo 
Pra ela pegar por menos 
As trouxa pra lavar roupa. 

Pra Carminha eu vou deixa 
Uma obrigação pesada 
Trabalhar em casa de família 
Levantar de madrugada 
E ela que se afoite 
Porque quando for de noite 
Ela não aguenta nada.  

Pra Ronaldo eu vou deixar 
Um emprego animoso 
Pra ele ficar andando 
Fazendo favor ao povo 
É um veterinário animado, 
Mas ele só vive melado 
De sangue de cachorro. 

Pra Ronaldo aqui ficou  
Duas quadras nesse romanço15 
Que o povo ta comentando 
E ficou no meu alcanço 
Se você me obedecer 
Vou pedir pra você 
Deixar de ser corno manco.   

Para Sergio o açougueiro, 
Para ele eu vou deixar 
Pra cortar carne no açougue  
Quando o dia se findar 
As pelancas que ele tiver 
Ele trás pra mulher 
E manda ela cozinhar. 

Para Mané Tratorista 
Para ele eu vou deixar 
Uma oferta muito boa 
Para de mim se lembrar 
Porque isso não me passa 
Uma jaqueta e uma tarrafa 
Para ele não se molhar. 

Para Bel dos Botijões 
Vou dar um conselho primeiro 
Pra ele entregar a moto 
E sair dos cativeiros. 
Vá pra roça descansar, 
O povo pega pra matar 
A formiga nos formigueiros  

Para Zé Pequeno 
Que tem disposição 
É muito interesseiro 
Pra ele não tem verão 
Pra ele sobreviver 
Vou deixar pra ele vender 
As caixas de papelão. 

Vou deixar para Zé Uiltom, 
Pra ele viajar pra o Poço 
Uma besta veia magra 
Com uma sarna no pescoço. 
Não tem cela pra botar 
Mas não pode demora 
Vai montado mesmo em osso. 

Pra Zuzú eu vou deixar 
Uma obrigação maneira, 
Que o povo da rua pede 
Porque ela é ligeira 
E não tem corpo enfadado 
Pra ela sair dando recado 
Porque é caminhadeira. 

Para dona Edelina  
Que é uma mulher idosa 
É muito delicada 
E também cheia de prosa 
Mais isso não quer dizer nada 
Ela vai vender cocada  
Pra beber água gostosa. 

Vou deixar pra Luciano 
Uma mulher que adoro 
Escreveu pra minha festa 
E pro Luciano eu choro. 
Eu hoje vou me acabar 
Mas pra ela eu vou deixar 
Pra escrever no meu cartório 

Agradeço a todo povo 
Que veio se apresentar 
Aqui na minha festa 
Antes d’eu me queimar 
Pra todos estou olhando 
Somente daqui a um ano 
É que torno a voltar. 

Findou a festa do Judas 
Hoje aqui na praça 
Foi uma festa moderna 
Porque não teve cachaça 
Todo povo consciente 
Isso é esforço da gente 
Somente pra fazer graça. 

Peço desculpas a todos 
Se alguém se achou-se agravado 
Porque li o ABC do Judas 
Mas eu não fui o culpado 
Eu vim fazer um favor 
Delino foi quem mandou 
Eu dar esse resultado.  

FUMACINHA  

Corria, corria, gritando  
Numa toado comprida 
Arrasta, arrasta a novilha 
Eu quero ver a caída 
Vamos bota-la no chão 
Enquanto ver a reação  
Do efeito da batida.  

[...] 
Monceis fez muita graça 
Rastejando Fumacinha  
Quanto o tempo se passa, 
Foi na casa da morena 
E bebe cinco cachaça

Depois desta cachaça 
Ficou desorientado 
Montou no cavalo  
Saiu muito avexado 
A baixa estava alterada, 
Jogou o cavalo n’água 
Quase que morre afogado. 

O Tota tava longe 
Mais ainda percebeu 
Que ele estava se afogando 
Ligeiramente correu 
O Elio chegou primeiro 
Tirou seu companheiro 
Que por isso não morreu. 

Elio de Dona Morena 
Este já está aqui 
Chegou de São Paulo agora 
Veio pra se divertir 
Parece que adivinha 
Veio correr com Fumacinha 
Pra ver fumaça subir.  

O senhor Dede de Loura 
Ele é um pouco atrevido 
Veio de longe campear 
Num lugar desconhecido 
Com vontade de achar 
Fumacinha para pegar 
No seu cavalo sabido. 

O Domingo do Simão 
É um vaqueiro animado 
Botou o cavalo nela 
E saiu muito avexado 
Os outros acompanharam 
Mais adiante acharam  
Ele num pau enganchado. 

Esse perdeu um facão 
Mais foi logo sem demora 
Comprou outro fiado 
Disse: “Eu tenho um facão agora.” 
Guardou quando ele saiu 
Roubaram do boca-piu16
É ser muito caipora.  

Rastejaram Fumacinha 
Durval com seus parentes. 
Durval corria gritando 
Com seus sobrinhos na frente 
Neste dia alcançaram  
Fumacinha e derrubaram 
No fogo da aguardente. 


UMA MOÇA QUE ARRANJOU UM GRANDE AMOR 

[...]17 
Aqui tem uma moça 
Que arrumou um grande amor 
Mas com ele não quis caçar 
Resolveu terminar  
E viajou pra salvador. 

E era um rapaz bom 
Muito direitinho. 
Ela foi pra Salvador 
Deixou ele sem carinho. 
Foi cumpri uma sina 
O nome dela é Carina 
O dele Ricardinho. 

Mais ela ainda vem  
Aqui pra passear 
Porque a avó mora aqui 
E ela vem visitar. 
Eu tenho toda certeza 
Que ela ainda deseja 
Ver o passado voltar. 

Ela arrumou outro homem 
E tem um minininho 
Mas nunca esqueceu 
Dos primeiro carinhos, 
Mas ainda tem esperança 
Ela achava bom que essa criança 
Fosse do Ricardinho. 

MINHA HISTÓRIA 

Todos prestem a atenção 
O que vou dizer agora 
Eu sinto uma grande saudade 
Que não me sai da memória, 
É lembrar os tempos atrás 
Porque hoje eu não sou mais 
Quem já fui em outrora. 

Na profissão de vaqueiro 
Corri muito atrás de gado, 
Enfrentei lutas pesadas, 
Pegava boi, montava bravo. 
Hoje já fui operado 
Me acho inutilizado  
Relembrando o meu passado. 

Porque, alem da idade 
Surgiu uma operação. 
Sinto uma grande saudade 
Que me dói no coração 
De hoje não fazer mais nada, 
Porque a velhice acaba 
Do homem a disposição.  

O homem na mocidade 
Faz tudo que quer fazer 
E se obter saúde 
Ele tem todo prazer. 
Na velhice nada alcança, 
Pois só lhe vem na lembrança 
Que este perto de morrer. 

A mocidade e a saúde  
Isso é o prazer do homem, 
Enfrenta tudo, batalha, 
Sua obrigação responde. 
Trabalha forte com gosto 
O suor molhando o rosto, 
Mas tá honrando o seu nome. 

O homem na mocidade 
Tem prazer brinca e farreia. 
Penetra em tudo com força 
Igual ao sangue nas veias. 
Digo perante o povo 
Lembrando o tempo de novo 
A saudade me judêia. 

Outras coisas no mundo 
Pra mim já terminou, 
Honrei minha profissão, 
Todos me davam valor (...) 
Para mim hoje nada mais influi, 
Por eu não ser mais quem fui 
Minha alegria acabou. 

Isto que estou falando 
É uma realidade, 
Porque todos nós sente 
Quando perde a mocidade. 
Hoje estou velho e cansado 
Lembrando do meu passado 
Quem me maltrata é a saudade. 

Nunca poço me esquecer 
Desses meus tempos atrás 
Enfrentei muito a vida 
Tinha bastante coragem, 
Hoje só resta a lembrança, 
Já se foi minha infância, 
Tempo que não volta mais. 

PARA MINHA ESPOSA 

Genita aqui vai escrito  
Uns versos para você 
Falando sobre o sertão 
Que a vida tem mais prazer 
Quem se criou-se por lá 
Não adota esse lugar  
Pouca gente aqui se vê. 

Aqui nas motas18 do sul 
O clima é diferente 
É um lugar abafado 
O ar não comporta a gente. 
Eu só tenho alegria 
Quando eu voltar um dia 
Ao meu sertão florescente. 

Genita, muito longe 
De você eu me acho 
Ficar aqui muito tempo 
Para mim é um fracasso. 
Com vontade de te ver, 
Desejando receber 
De você um forte abraço. 

Saudade, muita saudade, 
Essa é quem não me consola, 
Me lembrando de vocês 
Pois não me esqueço uma hora. 
Saudade dói que só brava, 
Meu peito é uma casa 
Onde vocês todos mora. 

Genita receba a lembrança 
De quem nunca te esqueceu 
Vivo cheio de saudade 
Meu coração pelo teu 
Eu sou firme permanente 
Seu amor uma semente 
Que no meu peito nasceu. 

A DANIELA19  

A Daniela é boa pessoa 
De muita delicadeza  
Eu gosto muito dela, 
Para mim uma beleza 
Ela vai [me]20 bota [na] escola 
Porque tem boa memória 
Por obra da natureza. 

Todo mundo gosta dela 
Porque é boa pessoa 
Por sua delicadeza 
Ela não fica atua, 
E isto que estou falando 
Porque o povo de Tucano, 
Ama está pessoa. 



COMENTÁRIO E ESTUDO DA OBRA[2]

Historiando O Poeta 

O poeta José Arcanjo nasceu na cidade de Tucano no Estado da Bahia, mais especificamente no povoado da Carnaíba, como confirma ele em entrevista concedida: “Eu nasci no dia 18 de março de 1928. “[...] Hoje  com 86 anos. [...] Eu nasci foi na Carnaíba de cima... É um povoado aqui de Tucano.” (ARCANJO MOURA. Entrevista ao autor. Tucano –BA. 2014 – CD 1). 
Aprendeu a ler, segundo ele, com 6 anos de idade. Diz o poeta que frequentou a escola pouco tempo. Perguntado sobre como e quando começou a ler, ele nos informou o seguinte:  

Eu acho que já tava com 6 anos, quando comecei a ler [...] foi pouco tempo de escola; era na roça a escola [...] a professora era Altamira, já morreu. Foi pouco tempo de Escola. [...] Aprendi a ler com esta professora, pouco tempo. E o restante de leitura foi pedindo aos outros. (ARCANJO MOURA. Entrevista ao autor. Tucano – BA. 2014 – CD 01) 

Sobre este pouco tempo de escola, é conveniente dizer que naquele tempo, início do século XX, o processo educacional era bem precário, principalmente nas várias regiões do país. Talvez por isso seu José Arcanjo não teve muito tempo em sala de aula para concluir os estudos. Outro fator é que, segundo o próprio poeta, teve que trabalhar muito cedo, abandonando assim os estudos. 
Seu José Arcanjo trabalhou como vaqueiro até, mais ou menos, aos 65 anos, quando parou com a profissão por questões de saúde e idade. Mesmo com a atividade de vaqueiro, que é uma profissão sem local fixo, morou em poucas regiões, e todas próximas de Tucano. 

Em cidades eu só morei nesta, agora em roça, morava na Carnaíba, na Lagoa do Canto. [...] Eu fui vaqueiro e o Mirante era cidade, eu morei lá. [...] Morei na Caueira, na Palmeira do Miranda, e nos Olhos d’Água. [...]” (ARCANJO MOURA. Entrevista ao autor. Tucano – BA – 2014 – CD 2) 

Perguntamos ao poeta com quantos anos começou a fazer verso, seu José responde que foi com 8 anos de idade.  

Estas coisas, quando eu estava com uns 8 anos, já fazia. Eu já fiz um lote de versos. [...] Para mim lembrar!!! [...] Deixa ver! [...] Já fiz uns 8 a 20 versos. Tive na escola Altamira, e depois não tive escola mais não, mas... Agora, fiquei sempre continuando com a leitura e depois consegui, sem escola sem nada. (ARCANJO MOURA. Entrevista ao autor. Tucano – BA – 2014 – CD 2) 

Coletamos 9 poemas do Sr. José Arcanjo Moura, dentre estes versos, alguns com pouco menos de 5 a 6 estrofes. Devido à idade avançada do poeta, sua família informou que ele já não consegue lembrar mais dos versos que fez.  
Tomamos a liberdade juntamente com o poeta, em dar nomes aos poemas: O primeiro e mais longo é Rabo Branco: poema que fala sobre as façanhas de um gato; O segundo é Lulú de Dona Morena: contando a história de um bêbado da região; O terceiro é Minha História; O quarto é um poema que ele dedica para sua esposa, Para minha Esposa; O quinto é outro poema dedicado a sua neta: Daniela; O sexto é um pequeno verso falando sobre uma novilha desgarrada: Fumacinha; O sétimo é um curto poema em que ele conta sobre Uma moça que arrumou um grande amor; O oitavo é um poema em Homenagem ao Mandacaru; e o último é um Testamento do Judas, versos de tradição na semana santa. 

 Versos Da Cantoria Do Cordel 

A temática predominante na maioria dos versos do Sr. José Arcanjo é a sátira, não a sátira crítica à sociedade, mas de acontecimentos corriqueiros no cotidiano de sua região. Como exemplo, tomemos o poema Rabo Branco (ver anexo A, para ler o poema na integra), em que ele conta a história de uma gato que vivia dando trabalho para os moradores da região.  

Atenção,  
Em verso vou publicá 
A história d’um gato 
Que come sem lhe custá.  
Só o gato engordado  
E os morado clamado  
Sem te jeito para dá. 

Da Varzea de Cima ao Raso Limpo, 
Da Serrote, a Carnaíba, 
Esse gato passeava, 
Procurando a comida. 
A custa dos criador, 
Pra ele nunca faltou 
Com que encher a barriga. 

[...] 
Nininho e Ovídio 
À noite foram caçar 
Depois que andaram um pouco 
Viram os cachorros acuar 
Chegaram era Rabo Branco 
Nininho muito franco 
Subiu logo pra laçar

[...] 
Quando foram chegando perto 
O gato se arrepiou  
Descendo de erva baixo 
Com ele se encontrou 
Querendo lhe estrangular, 
Nininho pra se livrar 
Botou o facho e queimou. 

Botou o facho na cara 
O gato pulou de um lado 
Nininho desceu em baixou 
Bastantemente assombrado 
Dizendo para Ovídio: 
“Já viu que gato atrevido? 
Me vi um pouco apertado.” 
[...]  (ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Este poema é o mais extenso de todos, possui 25 estrofes. Conta à história de um gato que aterrorizava a vida dos moradores na região. O local como afirma o poeta era na Carnaíba, e na Varzea de Cima, ambos povoados de Tucano onde o Sr. José Arcanjo residia.  
Segundo o poeta, depois que o gato comeu algumas ovelhas, os criadores ficaram assustados e contrataram caçadores para matar o felino, mas nem todos conseguiram captura-lo. O fato criou em torno de si uma redoma de fantasia. Havia algo de fantástico naquele animal que começou a mexer no imaginário da gente local.  

A fama de Rabo Branco  
Já está um pouco crescida, 
Já veio do Creguenhem 
Aqui para a Carnaíba. 
Dois caçadores pra esse gato 
Passar a semana no mato 
A fim de tirar-lhe a vida. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 
     
Graças a um caçador, que não se sabe de onde era, o animal é morto e a paz volta a reinar para os criadores de ovelha. Este caçador era “Sinhozinho Calazansas”, que segundo o poeta, era um homem misterioso e “manso” nas ações, talvez uma figura mais misteriosa que o próprio gato. “[...] Sabe onde as cobras dormem,/ Tem dote da natureza. [...] ” (ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) Cria-se neste dois personagem a figura do ser misterioso e do maravilhoso. As proezas do gato e o mistério de como aquele caçador conseguiu matar a fera que assolava as criações.   

[...] 
Sinhozinho Calazansas,  
Homem de sorte aplaudida, 
Nunca caçou Rabo Branco, 
Mas foi quem tirou-lhe a vida. 
As ovelhas sossegou,  
Sinhozinho foi quem matou  
Aquela fera temida.  

Ninguém sabe quem é ele 
Com aquela macieza, 
Sabe onde as cobras dorme 
Tem dote da natureza. 
Tem cachorro de valor, 
Rabo Branco se acabou 
Pra ele não teve destreza. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Logo depois que o gato é morto os moradores, principalmente os criadores, procuraram o poeta para pedir-lhe que fizesse um verso que contasse este fato. O Sr. José Arcanjo compõem o poema de maneira humorística que é o seu principal estilo, e dar um toque de ação de maneira quase épica. O humor é visível quando o poeta diz: 
  
[...] 
“Eu estou aqui morando 
Nuns terrenos de areia, 
Ando pra cima e pra baixo 
Pisando na mesma aldeia. 
Quem tiver cachorro ruim 
Não ponha atrás de mim 
Eu quero é comer ovelha.”  

A sátira vem, segundo Massaud Moisés (2004, p. 412) da “modalidade literária ou tom narrativo, consiste na crítica das instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. Vizinha da comédia do humor, do burlesco, da paródia, da ironia, e cognatos [...]”.  
No poema Rabo Branco, o Sr. José Arcanjo, crítica os caçadores por não terem capacidade de capturarem o gato. Critica também seus cachorros por serem ruins de caça como o seus donos: 
Bota cachorro pelado 
Neste gato não convém, 
Rabo Branco é sabido 
É mimoso e passa bem. 
Veio dá seus passos atoa 
Quem tem cabelo não acoa 
Quanto mais quem não tem. 
(ARCANJO MOURA, 2014) 


O sujeito caçador na narração do Sr. José Arcanjo é o foco principal, capturar o gato, deveres, torna-se a meta principal destes homens que, de certa forma, não conseguem por estarem despreparados, no que se refere à caça. 

[...] 
Nessonha a Dé Pereira 
Vieram para rastejar 
Com dois cachorros de fama 
Que só queriam botar 
Soltaram na bagaceira 
Não viram nem a poeira  
Rabo Branco ficou lá. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 
  
Estes temas satíricos de bichos eram muito usados pelos poetas. Segundo Câmara Cascudo:  

Os sertanejos amam as histórias de bichos, macacos, camaleões, tamanduás, raposas, preás, vinte outros, falando, governando, discutindo, casando, brigando como homens. Esses romances de bichos tem efeito seguro no humorismo sertanejo. Riem descompassadamente, como grandes crianças ouvindo o casamento da catita com o calangro ou a discussão do urubu com o bode. O intuito moralista da fabula é evidente e filiar-se-á nas fabulas de Esopo e Fedro, ensinadas outrora nas escolas paroquiais dos missionários. (CASCUDO, 1984, p. 20)

Outro verso do Sr. José Arcanjo que fala sobre animal, é o poema Fumacinha, curto poema contando um rápido lance sobre uma novilha desgarrada. (Ver anexo D, para acompanhar o poema na integra).  


Corria, corria, gritando  
Numa toado comprida 
Arrasta, arrasta a novilha 
Eu quero ver a caída 
Vamos botá-la no chão 
Enquanto ver a reação  
Do efeito da batida. 

[...] 
O senhor Dede de Loura 
Ele é um pouco atrevido 
Veio de longe campear 
Num lugar desconhecido 
Com vontade de achar 
Fumacinha para pegar 
No seu cavalo sabido. 

[...] 
Rastejaram Fumacinha 
Durval com seus parentes. 
Durval corria gritando 
Com seus sobrinhos na frente 
Neste dia alcançaram  
Fumacinha e derrubaram 
No fogo da aguardente. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Estes versos mostram a presença do vaqueiro no Sr. José Arcanjo. Na narrativa percebe-se a ação do vaqueiro em derrubar o boi que foge, esta ação é compreensível no verso que diz: “corria, corria, gritando/ numa toada comprida/ arrasta, arrasta a novilha/ quero ver a caída. [...]” José Arcanjo (2014, CD1). Há aqui, uma ligação do texto do Sr. José Arcanjo com a tradição das poesias de vaquejada, de pouca ocorrência, mas muito influente para a aparição dos ciclos do cordel que segundo Câmara Cascudo: 

As poesias de vaquejada e apartação são em número menor e estritamente locais. Narram às habilidades dos vaqueiros e descrevem a assistência, o coronel, o vigário, os fazendeiros, as palmas, as vaias, o jantar, abundante, os cavalos velozes e os animais felizes que escaparam, núcleos de futuras “gestas” ou os que foram atirados brutalmente no chão numa nuvem de pó.   (CASCUDO, 1984, p.109) 

Tendo sido vaqueiro por muito tempo o Sr. José Arcanjo tem propriedade para discorrer sobre assuntos de vaquejada. Este poema é a memória viva de sua cultura de vaqueiro que no labor da luta compôs estes versos.  
Paul Zumthor (2010) diz que estes fatos exaltam o valor moral e a exaltação ao perigo. A importância coletiva, no que diz respeito à questão da caça e do caçador; do vaqueiro e do gado, dentro do poema do Sr. José Arcanjo. Também à exaltação nos feitos fantásticos do animal, abordado em sua poética.   

Os cantos de caça dos povos africanos, ameríndios, asiáticos [...] se aparentavam, exaltando o valor moral, a sedução do perigo, o poder imprescindível do adversário e da natureza: marcando a preparação ou o término das grandes expedições coletivas, acompanhados de danças, de teatralizações, transformando em espetáculos as reuniões das sociedades cinegéticas ou os funerais de um caçador. (ZUMTHOR, 2010, p.101) 

A importância coletiva, no que concerne a questão da caça e do caçador, no poema Rabo Branco, e a exaltação nos feitos fantásticos do animal do vaqueiro com a novilha, em Fumacinha, tornam a poética do Sr. José Arcanjo, memória e registro da população local. E, como afirmamos antes em Zumthor (2010, p. 101), “[...] transformam em espetáculos, as reuniões das sociedades [...]”.  
Estes fatos são importantes para a comunidade, como revela Paul Zumthor, (2010). São feitos de um passado que o poeta retoma a cada momento em que recita o poema para o público. Há a conservação social a cada história narrada na voz do poeta. 

O instinto de conservação social continua implicitamente presente na obra em suas formas, mais raras, de poesia oral narrativa, contando algum acontecimento do passado que já teve importância para a comunidade... mesmo que hoje ele lhe seja indiferente; ou nas formas gnômicas, frequentes nas sociedades tradicionais, onde elas contribuem  para a transmissão de um saber comum: ainda hoje, no campo, tantos ditos rimados e ritmados sobre a condição do tempo que vai fazer. (ZUMTHOR, 2010, p. 101)       
           
No poema Lúlu de Dona Morena, versos que narram às peripécias de um bêbado tentando chegar a sua casa, não conseguindo achar o caminho, se perde e vive uma pequena aventura, até que o acham e trazem-no de volta.  

Lulú de Dona Morena, 
Ele fez uma saída, 
Foi passear no pé da serra 
Para divertir a vida. 
Lá bebeu se embriagou 
E nunca mais acertou 
Com o caminho da Carnaíba. 

Anoiteceu e não chegou 
Ficaram em confusão, 
Seguiu cinco homens atrás  
Procurando informação, 
Quem encontrava perguntava, 
Disseram que já andava 
Com pé calçado outro no chão. 

Só deus sabe como ele ficou 
Quando se viu embriagado, 
Não sabia onde estava, 
Um pé no chão, outro calçado. 
Por causa da pindaíba 
O caminho da Carnaíba 
Pra ele era fechado.  
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Nas peripécias feitas pelo bêbado, fica evidente que este personagem não é a figura de um herói, mas de um sujeito que não está ciente de si, e comete trapalhadas tentando achar o caminho de casa.  
O poeta chama-nos a atenção para o valor moral desta narrativa, assim, como vimos antes em Paul Zumthor (2010). O poema, abarca o conteúdo de uma mensagem, mostrando o que a bebida pode fazer com o ser humano. Segundo Zumthor (2010), a poesia oral comporta uma mensagem para o coletivo, e esta mensagem vem informar, neste caso, dos perigos do prejuízo do alcoolismo para com os membros da comunidade.  Isso fica evidenciado quando o poeta diz: “Não adiantava chamar/ que a bêbado ninguém responde”. (ARCANJO MOURA, 2014, CD1) Aquele que bebe não tem valor para a sociedade, é um sujeito sem moral, assim podemos conceber na mensagem do poeta. 
[...] 
Não comeu e nem bebe, 
Passou a noite com fome. 
Não adiantava chamar 
Que a bêbado ninguém responde. 
Pelo tanto que ele andou 
Nesta noite ele virou 
Bicho-lobisomem

[...] 
Mas tudo isso é o signo  
Que Deus lhe deu, 
A ordem do criador, 
Cada qual pra que nasceu. 
Das bodegas ele é freguês, 
O futuro que ele fez 
A cachaça já comeu.  
(ARCANJO MOURA, 2014, CD1) 

Nesta última estrofe há uma passagem que deve ser abordada com ênfase. Diz o poeta: “Mas tudo isso é o signo/ que Deus lhe deu,/ a ordem do criador,/ Cada qual pra que nasceu./ [...] O futuro que ele fez/ a cachaça já comeu. [...]” (ARCANJO MOURA, 2010, CD 1). Temos o que Zumthor (2010) afirma como gnômica, ou seja, formas que “ [...] contribuem para a transmissão de um saber comum. [...]” (ZUMTHOR, 2010, p. 101) São os ditos e provérbios do povo que caracterizam o valor moralizante na poética, e estes versos do Sr. José Arcanjo, seguem esta mesma linha.  
Além dos poemas satíricos o Sr. José Arcanjo tem versos que mostram um pouco do seu sentimentalismo e amor. O poema que se segue foi escrito para sua esposa. 

Genita aqui vai escrito  
Uns versos para você 
Falando sobre o sertão 
Que a vida tem mais prazer 
Quem se criou-se por lá 
Não adota esse lugar  
Pouca gente aqui se vê. 

Aqui nas motas do sul 
O clima é diferente 
É um lugar abafado 
O ar não comporta a gente. 
Eu só tenho alegria 
Quando eu voltar um dia 
Ao meu sertão florescente. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Neste verso, nota-se um pouco do sentimentalismo e lirismo no poeta, que gosta de sua terra, que conservar o amor por sua mulher e pelo seu lugar. Isso fica concreto no verso que se segue.  

[...] 
Genita, muito longe 
De você eu me acho 
Ficar aqui muito tempo 
Para mim é um fracasso. 
Com vontade de te ver, 
Desejando receber 
De você um forte abraço. 

Saudade, muita saudade, 
Essa é quem não me consola, 
Me lembrando de vocês 
Pois não me esqueço uma hora. 
Saudade dói que só brava, 
Meu peito é uma casa 
Onde vocês todos mora. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Câmara Cascudo (1984) diz que este tema na poesia popular não é tão explorado. “[...] Todo romance amoroso cantado no sertão é mais ou menos recente e trabalho individual.” (CASCUDO, 1984, 22) Zumthor (2010, p. 104) afirma que  “[...] a instituição matrimonial , valorizada pela coletividade e engajada na complexidade das relações econômicas, representa um elemento natural. [...]” Por isso a necessidade de ter saudades da mulher, uma cultura já enraizada no poeta pela valorização ao matrimônio e a sua  amada.  

Quanto à poesia amorosa, ao discurso personalizado por eu ou tu ou sob uma capa narrativa, impessoal, um pequeníssimo número de motivos típicos formalizam, em cantos geralmente bastante breves; motivos primários, fundados na experiência do desejo, universal de um imaginário erotizado: da vista à esperança, ao prazer e à amargura. Entretanto, a instituição matrimonial, valorizada pela coletividade e engajada na complexidade das relações econômicas, representa um elemento natural – tanto quanto os ciclos do corpo e da afetividade a que ela se sujeita ou que contraria. Por isso, sem dúvida todos os folclores do mundo são ricos de cantos nupciais. (ZUMTHOR, 2010, p. 104) 
  
A forma com que a poesia é transmitida demonstra a fidelidade do poeta ao seu amor: 
[...] 
Genita receba a lembrança 
De quem nunca te esqueceu 
Vivo cheio de saudade 
Meu coração pelo teu 
Eu sou firme permanente 
Seu amor uma semente 
Que no meu peito nasceu. 


O poeta ainda conserva, e o que fica claro é a tradição as cantigas de amor, e a memória de um tempo provindo da antiga tradição poética da Idade Média. (Zumthor, 2010).  Mas este tipo de poesia como afirmamos antes, com base em Câmara Cascudo, não é muito explorado no cordel, nem na poética oral nordestina. Casos como do Sr. José Arcanjo são individuais e específicos.  
            Fica evidente que a poesia do Sr. José Arcanjo é carregada de elementos característicos do poeta simples que se utiliza da cultura popular e de seu meio regional e profissional no labor de seus versos. No poema Minha História, há o saudosismo do tempo de vaqueiro e a tristeza por não poder mais exercer a profissão.

Na profissão de vaqueiro 
Corri muito atrás de gado, 
Enfrentei lutas pesadas, 
Pegava boi, montava bravo. 
Hoje já fui operado 
Me acho inutilizado  
Relembrando o meu passado. 

Porque, alem da idade 
Surgiu uma operação. 
Sinto uma grande saudade 
Que me dói no coração 
De hoje não fazer mais nada, 
Porque a velhice acaba 
Do homem a disposição. 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 
  
A profissão de vaqueiro no aboiar para conduzir ou apartar o gado, modelou a métrica da poesia do Sr. José Arcanjo e o ajudou a criar o ritmo em seus poemas. Era no apartar, ou depois das atividades, que os vaqueiros se reuniam para se divertir e ouvir as cantorias.  
Segundo Câmara Cascudos: “Os mais antigos versos são justamente aqueles que descrevem cenas e episódios da pecuária. Os dramas e as farsas da gadaria viviam na fabulação  roufenha dos cantadores.” (CASCUDO, 1984,  p. 115) Evidentemente que o Sr. José Arcanjo não utilize das toadas e da cantoria para usar em seus versos. Os versos do Sr José Arcanjo antes abordados são declamados mas,  no dizer de Câmara Cascudo (1984), as cantorias possuem a mesma métrica, assim, de certa forma, ajudou a modelar a ritmicidade de sua poética. 
Enfim, compreende-se no poema Minha História uma nostalgia dos tempos de mocidade, conceituado assim, mais uma vez o que afirmamos antes em Paul Zumthor (2010), a forma gnômica de um saber social, ou a transmissão de um conselho aos mais jovens a aproveitarem o tempo de mocidade. 

[...] 
A mocidade e a saúde  
Isso é o prazer do homem, 
Enfrenta tudo, batalha, 
Sua obrigação responde. 
Trabalha forte com gosto 
O suor molhando o rosto, 
Mas tá honrando o seu nome. 

[...] 
O homem na mocidade 
Tem prazer brinca e farreia. 
Penetra em tudo com força 
Igual ao sangue nas veias. 
Digo perante ao povo 
Lembrando o tempo de novo 
A saudade me judêia. 
(ARCANJO MOURA, CD1) 


Verifica-se no poema  a mensagem aos mais jovens para usufruírem da vida enquanto ainda são moços, sendo assim é relevante observarmos os princípios de valores e saberes , alem da transmissão da sabedoria por um poeta nos seus 86 anos de idade.  
Para concluir este tópico, vemos no Sr. José Arcanjo, temáticas não muito variadas. O humor satírico é o que mais se sobressai em sua obra. Analisamos também nos poemas como Minha História Para minha esposa, que há um certo lirismo e saudosismo nostálgico, tanto para com a profissão do vaqueiro, quanto para a mocidade. Tendo vista, com base em Paul Zumthor (2010), que tais poemas são carregados, em seu conteúdo de uma carga de valores moralizantes e de saberes, tanto regionais como universais.  

A Performance Poética 

Para explicar o desenvolvimento da performance na poética do Sr. José Arcanjo, iremos, através de um poema,  analisar como se dá este desempenho performático. Este poema é chamado de Testamento do Judas. Não é um tema novo, mas muito antigo. O próprio nome do poema é dado a todos os versos nesta temática. 
  
Hoje eu vou morrer queimado 
Só me queixo do prefeito 
Trabalhei vinte dois anos 
Não recebi meus direitos 
Nunca tive proteção 
Hoje eu to nesta aflição 
E ele não me dá jeito. 
[...] (ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Este tipo de poema era feito para a queima do Judas no sábado de aleluia. Pedia-se a um determinado poeta, que fosse feito um testamento deixado por Judas, o qual era representado por um boneco de pano. Nestes testamentos os poetas utilizavam-se da sátira para com as figuras ilustres das cidades, que era quem, muita das vezes, financiava este acontecimento. Por isso na estrofe acima o personagem joga a culpa no prefeito. Segundo Câmara Cascudo: 

Nos sábados de Aleluia rasgava-se um Judas de pano velho, papel e trapos, no meio de assuadas. Dizia-se romper a Aleluia. Os Judas eram preparados secretamente e postos em lugares públicos e mesmo à porta de adversários políticos. O Sr. Gustavo Barroso recorda que no Ceará, fazia-se outrora um júri, presidido por pessoa respeitável, para julgá-lo.  O veredictum2 infalível condenava-o à forca. Na maioria dos casos o Judas trazia seu "testamento” em versos de pé-quebrado, alusivo às pessoas da localidade, com intenções satíricas, políticas ou apenas humorísticas. (CASCUDO, 1984, p.78) 
  
Na cidade de Monte Santo – BA-, ainda acontece esta tradição nos Sábados de Aleluia. Em Tucano ao que parece, esta tradição está se perdendo, mas em muitas cidades do interior nordestino desenvolve ainda este acontecimento.   
Sendo que em algumas cidades a tradição é diferente. Em certas localidades no interior do Nordeste, como Câmara Cascudo (1984) evidencia , o Judas é rasgado, já nas cidades de Monte Santo e Tucano, ele é queimado. O Sr. José Arcanjo confirma-nos no verso que diz: 

[...] 
Falei também com o Gildasio 
Pra vê o que ele fazia, 
Porque vou morrer queimado 
Vê se ele me defendia. 
O que ele veio me dizer: 
“Pra mim se você morrer 
Eu tenho mais alegria.” 
[...] (ARCANJO MOURA, 2014) 

O que chamamos a atenção, é o testamento que é lido para a comunidade antes de acontecer à queima. Câmara Cascudo (1984, p. 78) diz que: “ [...] Na maioria dos casos o Judas trazia seu testamento [...]”. Neste testamento o poeta coloca os nomes das pessoas que patrocinam o evento, fazendo sátiras com os sujeitos que custeavam a tradição, ou aproveitava para fazer críticas políticas aos representantes das cidades.     


[...] 
Pra Niria eu vou deixar 
Um emprego de alegria 
Pra ela ficar trabalhando 
Em casa de família  
Pra ela não perder o ganho 
Ela só vai tomar banho 
De oito em oito dia.  

Pra Dadá eu vou deixar 
Uma obrigação mais pouca 
Pra ela não se afragelar 
Se ela fica louca 
E ninguém ta agradecendo 
Pra ela pegar por menos 
As trouxa pra lavar roupa. 

Pra Carminha eu vou deixa 
Uma obrigação pesada 
Trabalhar em casa de família 
Levantar de madrugada 
E ela que se afoite 
Porque quando for de noite 
Ela não aguenta nada.  
[...] (ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Destarte, estes poemas eram lidos, mas a leitura tinha que ser declamada em voz alta, pois em alguns casos faltavam meios eletrônicos como microfone, ou megafone. Segundo Zumthor (2010) nesta declamação o poeta utiliza-se de toda sua habilidade oratória para recitar, e fazer com que sua mensagem seja ouvida e entendida pelo seu público. Para isso, é necessário a projeção de voz, e teatralização dos assuntos utilizados para atrair o público.  

Estes traços, mais ou menos claros, manifestam em poesia a oposição que, por suas funções, distingue a voz da escrita. O texto escrito, já que subsiste, pode assumir plenamente sua capacidade de futuro: o escritor desconhecido, segundo o esquema romântico, se convence que está conhecido dentro de um século. O poeta oral não pode fazê-lo por estar demasiadamente sujeito à exigência presente do seu público: por outro lado, ele desfruta da liberdade de retocar seu texto incessantemente, como mostra a prática dos cantadores. (ZUMTHOR, 2010, p. 138) 

Esta exigência do público, que fala Zumthor (2010) acaba evocando no poeta a ação de melhor ser entendido, e não apenas ser escutado. A diferença em ler um poema e recitá-lo, reside no conhecimento do texto pelo poeta. O texto decorado é perceptível numa maior projeção de voz e maior performance. Como diz Zumthor (2010, p. 178) “O desejo da voz viva habita toda a poesia, exilada na escrita. O poeta é voz. [...]” E sendo voz a poesia precisa ser bem ouvida.  

Toda poesia aspira a se fazer voz; a se fazer, um dia, ouvida: a capturar o individual incomunicável, numa identificação da mensagem na situação que a engendra, de sorte que ela cumpra um papel estimulador, como um apelo a ação. (ZUMTHOR, 2010, p.179)              

Acreditamos que o Sr. José Arcanjo abdica de escrever seus poemas por motivos performáticos de oratória. Ao declamar seus poemas, já memorizados, há na voz do poeta, uma maior projeção de voz, um maior entendimento do escritor para com seu texto,no qual evidencia  Zumthor (2010): o desejo vivo da voz entre a poesia.  

A Linguagem Do Poeta 

Abrimos um parêntese neste tópico para falar sobre a linguagem do poeta, que é visivelmente simples e coloquial, apresentando variações dialetais como se mostra na estrofe: 


[...] 
Anoiteceu e não chegou 
Ficaram em confusão, 
Seguiu cinco homens atrás  
Procurando informação, 
Quem encontrava eles perguntava, 
Disseram que já andava 
Com pé calçado outro no chão 
(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

No quinto verso encontramos a frase “quem encontrava eles perguntava”. Nesta frase os verbos “encontrar” e “perguntar” não faz concordância com o pronome pessoal “eles”, que está no plural, sendo a forma correta, na língua padrão: “quem eles encontravam, perguntavam”.  
Esta frase, na norma padrão, poderia ser classificada como erro, mas segundo Bagno, (2007) temos neste verso uma variação linguística, mais propriamente, duas variações: “[...] Variação morfológica: [...] exibem sufixos diferentes para expressar a mesma ideia; Variação sintática: [...] o sentido geral é o mesmo, mas os elementos estão organizados de maneiras diferentes [...] (BAGNO, 2007, p. 40) 
Só para ratificar, a variação linguística é um ramo da Sociolinguística que estuda a língua pelo viés da variação, ou pela sua heterogeneidade e tendência em variar. (Bagno, 2007)  
Estas variações dialetais são encontradas na Língua Portuguesa de todo o território do nosso país. “Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma que falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar [...]”. (PCN, 1997 apud BAGNO, 2007, p.27) 
Segundo Zumthor “[...] ocorrem inúmeras tensões entre literatura nacional escrita, uma poesia oral de dialetos e os esforços ligados a movimentos regionalistas para criar uma variedade do idioma local. [...]” (ZUMTHOR, 2010, p.37) O exemplo que Zumthor (2010) aborda, acontece em países com língua apresentando um nível de variações muito grande, ou com dialetos próprios. Mas sempre há um nível de tensão muito forte, entre variações dialetais e língua padrão, surgindo assim o preconceito.       
Por ter frequentado pouco tempo à escola, o Sr. José Arcanjo, não teve muito contado com a norma-padrão, ou como diz Bagno (2007, p. 35) “[...] modelo de língua ‘certo’ de ‘bem fala’ [...]”. Neste sentido, como há em todo o território formas variantes da língua, o poeta José Arcanjo também apresenta está heterogeneidade na sua fala. Esta variação é muito forte em sua poesia justamente, por sua obra ser apresentada oralmente e não escrita. Sua poética oral reflete a variação linguística de sua região sendo o contado mais vivo de língua e poesia no que se refere à poesia ágrafa. 

Paralelo Com A Poética Popular Nordestina E A Estrutura Dos Versos 

A poesia do Sr. José Arcanjo revela, no aspecto da rima, ao que parece, a mesma estrutura dos versos de cordéis, tradicionalmente a estrofação de sete versos. E segue o esquema de rima ABCBDDB. Um exemplo é o começo de seu poema Lulú de Dona Morena, (destacamos as partes que rimam, em negrito):  

[...] 
Lulú de Dona Morena, 
Ele fez uma sda 
Foi passear no pé da serra 
Para divertir a vida 
Lá bebeu e se embriagou 
E nunca mais acertou 
Com o caminho da Carnba. 
(ARCANJO, 2014, CD 1) 

Seus versos obedecem a constante-rítmica de sete sílabas. Estes versos, no dizer de Câmara Cascudo (1984), eram os mais tradicionais. “[...] A métrica se manteve coerentemente dentro das sete sílabas. Setissilábicas eram as xácaras mais populares, os romances, as gestas guerreiras. É fácil verificar em qualquer cancioneiro.” (CASCUDO, 1984, p. 22).  
Os poemas do Sr. José Arcanjo são em boa parte na forma da redondilha maior, o que dá uma característica bastante rítmica aos seus versos. Tentamos fazer a escansão de uma parte do poema Rabo Branco

[...] 
1     2    3   4   5     6   7 
Eu/ es/tou/ a/qui/ mo/ran/do 
1         2    3    4   5    6  7  
Nuns/ te/rre/nos/ de/ a/rei/a 
1     2   3     4    5      6  7 
An/do/ pra/ ci/ma e/ pra/ bai/xo 
1    2     3   4     5     6        7 
Pi/san/do/ na/ mes/ma al/de/ia. 
1          2   3    4    5    6    7 
Quem/ ti/ver/ ca/cho/rro/ ruim/ 
1        2    3    4   5     6     7 
Não/ pó/nha/ a/trás/ de/ mim/, 
1     2     3   4   5      6     7 
Eu/ que/ro/ é/ co/mer o/vê/lha.  

(ARCANJO MOURA, 2014, CD 1) 

Devemos dizer que nem todas as estrofes estão metricamente em redondilhas perfeitas, alguns fogem da métrica. Veríssimo Melo (1994) diz muitos cordelistas modernos relaxam e por vezes aparecem algumas obras com “pé-quebrado”., ou seja, fora da métrica. 

Alguns poetas, como Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e outros, eram mais cuidadosos em relação à métrica e rima dos seus versos. Outros, mais modernos, relaxam um tanto seus versos, aparecendo muito “pé-quebrado. O bom poeta de cordel já tem o ritmo do verso no ouvido, a música, que flui naturalmente, sem esforços. Outros, embora imaginosos, são duros de roer na sua métrica e rima. É que os poetas populares, em geral, interessa-lhes mais o conteúdo do que a forma de expressão. (VERISSÍMO, 1994, p. 23) 
  
O poeta José Aras (1984), em seu poema de cordel Meu Folclore, faz uso desta mesma estrutura de verso. Este poema conta a historia de Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos. Nota-se que em cada estrofe tem sete versos e a métrica, não sistemática, tenta obedecer ao esquema de sete sílabas.  

O leitor já ouviu contar 
A história do Conselheiro, 
De um simples penitente 
Que assombrou o mundo inteiro, 
Modesto, honesto e valente 
Que fascinou tanta gente 
Neste sertão brasileiro. 

[...] 
Sua arma era uma vêrga 
Na espécie de bastão 
Era o tipo de Moisés 
Pregando pelo sertão 
Imitava no Sinai 
E o povo tinha-o por pai 
E autor da Redenção. 
(ARAS, 1957 apud CALASANS, 1984, p.77) 

José Aras, já falecido, morava em Euclides da Cunha/BA e José Arcanjo, como afirmamos antes, reside em Tucano. Estas cidades vizinhas, morada destes dois poetas, os quais tem em seus poemas uma estruturação relacionada, e essa vizinhança reforça a incidência dessa modalidade poética no mesmo territorio. A diferença entre ambos é que, os poemas de José Aras são impressos, e os do poeta José Arcanjo é memorizado. Lembrando que José Aras foi contemporâneo do Sr. José Arcanjo. É visível que esta métrica tenha influenciado estes dois poetas. 
Outro poeta, não muito distante, é o cordelista Antônio Teodoro dos Santos, chamado de O Poeta Garimpeiro. Este poeta nasceu na cidade de Jaguarari – BA, e morreu na cidade de Senhor do Bonfim – BA. Cidades que não estão muito distantes, todas elas fazem parte do sertão semiárido da Bahia. O poeta Antônio Teodoro dos Santos segue a mesma versificação que o Sr. José Arcanjo e o cordelista José Aras. No livro Lampião: o rei do cangaço, publicado pela Editora Luzeiro, é perceptível a métrica e a versificação do poeta: 

Nestes versos sertanejos 
Escritos por minha mão 
Baseados na memória  
Do cangaço no sertão 
Vou descrever o destino 
Do capitão Virgulino 
Que se chama Lampião. 

Cada pessoa, no mundo 
Tem de cumprir seu destino: 
Um é rico sossegado 
Outro pobre e peregrino 
Erra outro passo a passo 
Igual o rei do cangaço 
O capitão Virgulino. 
(SANTOS, 1959, p. 3) 

Este poema conta a biografia de Lampião, Virgulino Ferreira. É um cordel escrito também no esquema de sete versos cada estrofe, e obedece a métrica de sete sílabas. 
Veríssimo de Melo (1994), diz que esta é uma forma pouco usual no cordel. As formas mais utilizadas são as linhas de seis versos, ou sextilhas. [...] Em menor número encontramos estrofes de sete sílabas e em décimas. [...]” (MELO, 1994, p.23)

Salienta-se que os folhetos de temas tradicionais e os de época ou “acontecidos”, obedecem àqueles tipos de estrofes (sextilhas, setilhas e décimas). Todavia, no que se refere aos folhetos de peleja ou desafios, a formação é também bastante variada, apresentando-se em mourões, galopes a beira-mar, gemedeiras, etc. (MELO, 1994, p. 23) 

É importante salientar que a poesia oral se flexibiliza, e não dispõe do rigor da escrita. Zumthor afirma que:  

Em geral, as realizações orais de um sistema de versificação oferecem uma gama mais limitada que os da escrita. Enquanto a escrita individual, com a liberdade que lhe é própria, se evada facilmente do sistema, interiorizando-o, a voz pode apenas flexibilizá-la, exagerando suas regras em algum ponto particular [...]. (ZUMTHOR, 2010, p.192) 

Mesmo a poesia oral se flexibilizando, tendendo-se a ser maleável ao sistema imposto, que é mais rigoroso na poesia escrita, a obra do Sr. José Arcanjo obedece ao esquema de rimas do cordel e não tenta fugir deste sistema, pelo contrario, todos os seus poemas seguem a versificação de sete versos e a metrificação da sete sílabas.   
Fazendo estas comparações entre estes três poetas, podemos concluir que o Sr. José Arcanjo segue a mesma métrica, a métrica do cordel. Tanto a temática, a linguagem, a performance e a estrutura do verso correspondem à tradição da poesia de cordel. Sendo o cordel escrito, e a poesia do Sr. José Arcanjo oral, não podemos dizer que o poeta não tenha contato com o cordel, tendo em vista há uma semelhança gritante entre sua obra e a tradição do cordel. Zumthor (2010, p.177) diz que, “toda palavra poética (passa ou não pela escrita) emerge de um lugar interior e incerto que, bem ou mal, se nomeia por metáfora: fonte, fundo, eu, vida [...]”.  
Acreditamos que esta métrica cordelística na obra do Sr. José Arcanjo, tenha provindo do contato que este autor teve com feirantes de cordel. Como abordamos antes, está era a literatura que as pessoas do interior nordestino tinham contato. A métrica do cordel modelou os poemas do Sr. José Arcanjo.   
Possuindo o mesmo esquema de métrica e rima do cordel, a obra do Sr. José Arcanjo segue uma tradição da cantoria nordestina do cordel. Significa dizer que o poeta guarda em sua memória: um registro cultural difundido em sua localidade, abrangendo a cultura histórica e singularizada de um povo. Esse não é um bem individual, mais sim, um bem universal refletido na sua poesia. (Zumthor, 2010).





REFERÊNCIAS 

ARCANJO MOURA, José. Entrevista e Poemas. Entrevistador: Paulo Monteiro dos Santos. Tucano –BA, 2014, CD1. 

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
   
CALASANS, José. Canudos na Literatura de CordelSão Paulo: Ática, 1984. 

CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Ed da Universidade de São Paulo, 1984.

COMPAGNOM, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. São Paulo: EDUSP, 1998.

HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do Trabalho Cientifico. - 6. Ed – São Paulo: Atlas, 2001.
  
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Disponível em: < https//sabotagem.revolt.org > Acessado em 2 de Mar. 2014.

MELO, Veríssimo, “Literatura de Cordel: Visão histórica e aspectos principais”. In: LOPEZ, Ribamar. (org). Literatura: Antologia de Cordel. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 1994. 

MOIÉS, MassaudDicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2004. 

SANTOS, Antônio Teodoro, Lampião: o rei do cangaço. São Paulo: 1959  
ZUMTHOR, Paul. Introdução a Poesia Oral. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. 










[1] Graduado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) email: paulus.monterum@gmail.com
[2] Este trabalho me servil como conclusão de curso de graduação prestado a Universidade do Estado da Bahia.